Eu tenho um monstro engasgado no meu peito, não da pra fingir. Minha família é uma ilusão, ela não existe. Aos 16 anos descobri a falta, e ela embaralha tudo. Ninguém supera um abandono, uma catástrofe, um trauma de maneira absoluta. Os resquícios do abandono coagulam a tranquilidade cotidiana. Não é possível continuar fingindo que não existe um buraco negro, um nada separando tudo. Carrego a culpa de não amá-los como deveria. Minha liberdade é enlouquecedora, proporcionando territórios desconhecidos, solidões devastadoras, medos absurdos, e uma carência que debocha de mim no espelho. Minha família me faz lembrar de todos os detalhes assustadores, das milhares de vezes que não me reconheci com o sobrenome que me deram. Quando esbarro com alguns parentes minha identidade se desfalece ladeira abaixo, sigo em queda livre, um constante desespero gélido engolindo as esperanças. Nada de infinito existe depois de um trauma, tudo é carregado de um fim, e o que salva o desejo contínuo é o desconhecimento da data da morte. Meus pulmões escuros agarram-se a fumaça acalentadora da solidão, tornando os delírios noturnos minha única fonte de esperança. Minha realidade paralela é a realidade que existe, somente eu, meu devastado e machucado eu, meus membros dispersos pelo espaço, meu eu que não existe, minha falha existência traumatizada, minhas inúmeras faces, meus fragmentados eu's, somente eles reconhecem a ilusão dos laços sanguíneos, e consequentemente a perdição do que a maioria chama de realidade. Me sinto exaurida, cansada de todas as regras sociais da mais valia. Não desisto porque sou covarde e a infinitude da morte me assusta. O que é que vale mais, meu medo ou meu trauma? Meu corpo gordo carrega dentro da pele a flacidez inócua de quem resiste. Bravamente levanto todas as manhãs e digo: não importa, mesmo que digam o contrário, eu hei de me encontrar em alguma esquina, dentro de um copo, um canudo, um banheiro sujo. Eu hei de descobrir o porque disso tudo, o sentido dessas coisas inalteráveis. Eu hei de seguir adiante, apesar de, independente de. Eu hei de superar o monstro engasgado na minha garganta, a família desconhecida e a infinitude de um trauma.
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