... Por um instante ela percebeu que estava sem sapatos. Sentia na pele a dureza de um chão frio e molhado, e era sentindo que percebia os pés, era doendo que sentia falta dos sapatos, era pisando naquele chão frio e molhado que acolhia a terra. Ela amava, amava aquele momento onde sua percepção ultrapassava a racionalidade, amava os calos e as dores de quem anda descalço, amava a felicidade que sentia quando a água limpa se enroscava entre os dedos dos pés. Ela sonhava com as milhares de possibilidades que poderia sentir em cada solo, asfalto, grama, lama, penhasco... Não se interessava mais por tênis, saltos ou sandálias, não sentia falta de cadarços ou meias, não respirava pelos pulmões vazios enquanto os dedos dobrados e gordinhos não encontravam espaço pra correr sem ela. Eles iam, assim como seus antigos sapatos, eles se perdiam. Por um instante ela percebeu que estava sem os dedos dos pés. Sentia uma parte estranha tocando o chão e descobriu que cada dedo tocava um espaço no infinito, e foi nesse momento que ela fechou os olhos e compreendeu a sensação de cada dedo perdido no espaço. Depois de um tempo ela percebeu que não tinha mais os pés, e que eles pisavam firmes no mar de um país distante, enquanto os dedos tomavam banho em planetas que ela ainda não conhecia... Sentiu-se feliz. Foi nesse exato momento que ela encontrou uma de suas pernas agarrada no para-peito da janela, e quando olhou pro céu viu sua outra perna dando piruetas no ar. O corpo espalhado e disperso, agregava a alma uma sensação de leveza e suavidade, amando as muitas cidades e os milhares de vilarejos desconhecidos onde adormeciam no final da noite. Seus braços já haviam partido, um quis conhecer o deserto, enquanto o outro cumpria afazeres na China, foi exatamente ai que seus dedos se enroscaram nas raízes de árvores raras e profundas. Um olho no vento, um fio de cabelo pirulitando na praça, um pedaço da boca deslizando-se na cachoeira, um pé no asfalto, um dedo na lua, uma orelha no universo....
Ela era tudo aquilo dentro de um perfume. Ela era rosa e despenhadeiro, precipícios e encontros, desejos e planetas. E era amando que guardava no peito o refugio de cada parte desgarrada, esperando o dia que ,unidas, dançariam cada música que já foi cantada, cada promessa de amor que ainda não foi vivida, cada segredo escondido a sete chaves, cada vontade gritada em silêncio, cada pedido feito no fundo do coração.
Era assim que, depois do amor, ela calçaria os sapatos e pegaria o caminho de volta pra casa.