Para: Camila Morais (aquela que me desperta)
“ Coríntios, Capítulo 15, versículo 1 – Irmãos, lembro a vocês o Evangelho que lhes anunciei, que vocês receberam e no qual permanecem firmes. É pelo evangelho que vocês serão salvos, contanto que o guardem do modo como eu lhes anunciei; do contrário, vocês terão acreditado em vão.
Ela costumava chegar em casa tarde, e quase sempre, bêbada. Passava a noite rezando nos butecos mais sujos, aqueles onde os falsos profetas e os transmissores do mal costumam buscar o bem que lhes falta. Naquele dia chegou em casa e abriu uma carta do seu Tarot (o rei de ouros). Como pra tudo existia uma conexão sublime e inexplicável, assim dizia ela, colocou a carta no seu altar e adormeceu com o significado nos braços.
Regina tomava um café enquanto aquele homem a perseguia com os olhos. Ela saiu, fumou um cigarro e acariciou os dedos pontudos cheio de anéis. A noite correu mansa, e quando a luz cheia gritava no céu a noite assoprava em suas saias que algo iria lhe acontecer.
Nossa mulher desceu as escadas, e antes mesmo de se decidir dele, seu longo braço arrastou-se para as mãos suaves daquele desconhecido. Silêncio nos interstícios da alma. Nesse madrugada os dois novos amantes, de um século desprovido da coragem do amor, amaram-se. Desconhecendo os caminhos tortuosos de um sentimento que ele nunca havia sentido , descobriu-se em chamas. Fervendo por dentro de algo que, sobretudo, o assustava. Regina era vivente nessas coisas que nós, meros seres humanos, denominamos coragem. E logo ali, quando a brasa ainda estava sendo acesa ela pressentiu a escuridão na qual aqueles dois se adentravam.
Aquele homem passou a viver coisas que jamais imaginaria. Aquela mulher cedeu, e cedeu de mais. Mesmo ela, cheia das vozes e dos ouvidos, cheia do cheiro imperceptível a olho nu. Mesmo ela, entregou as chaves da porta de sua alma, e esqueceu-se de abrir as janelas.
Dois filhos, uma casa, um cachorro e uma bicicleta. Chegaram a materializar sonhos (mesmo sabendo que os sonhos não se materializam, eles fazem parte somente enquanto dormimos), construíram barcos de pesca e pequenos vasos, feito a mão, de cerâmica Tailandesa. Compraram uma vitrola, discos de Bach, Vivaldi e Beethoven. Na estante os livros da mulher, Clarice, Ana, Sylvia e Virginia, no coração o medo do amor.
O primeiro rompimento veio pela brutalidade do começo. Indecisões machucam.
Quando se abre uma ferida ela se cura com o tempo, mas na pele guarda-se a cicatriz das lembranças indispostas pelos prazeres da carne. Retornaram estancando sangue. Panos e panos molhados, litros de águas foram gastos e a conta na farmácia aumentava em demasiada velocidade. Para cobrir a realidade feriram-se ainda mais. Ele corria enlouquecidamente, principalmente nos momentos atormentados pelo desconhecido, para aquele lugar calmo e confortável de antigamente, mas o retorno nunca foi o mesmo. Não seria, jamais, o mesmo.
Ela sonhava com filhotes metade porco, metade gente. Passou a ter insônias, e nos pesadelos seu seio era sugado por um lobo gigante. Caminhava horas sozinha nos horários de silêncio das grandes cidades, somente quem já amou consegue sentir o cheio de Dama da Noite. Aumentou o consumo de álcool. O peito andava apertado, doendo pra dentro. Ele perdeu o ar, sugou sugou sugou e fez como os bebês recém nascidos fazem, se engasgam de tanto leite. Mas não se separavam, e aquela conexão indissolúvel os unia humanamente. Cada parte precisava unir-se aquela outra, dois corpos quando se encontram entendem imediatamente o que se passa. Já duas almas quando se encontram, precisam de pelos menos um ciclo de lua pra amarem-se embaixo d’água. Estar submerso a um universo totalmente desconhecido exige tempo, e tempo não se espera, tempo se vive. Aquele tempo vivido causava medos nele e escuridões embrenhadas de dor, nela.
Veio então o segundo rompimento.
Preciso dizer que, não ter, faz o homem reconhecer a fome.
Racionalmente Regina compreendeu o encontro. Carregou no útero a parte que lhe cabia do amor, abortou sem querer, e viu seu feto morto nos sonos cheios de vaginas que à atormentavam. Meu Deus, se Deus existe em algum lugar e escuta os desesperados, ele caiu no inferno. Possuía dentro dele uma repulsa que o fazia sempre procurar novas mulheres, mas a vida encoberta por debaixo da existência, a verdadeira existência, ainda o fazia dela. Pertenciam-se como o universo dispôs. Dois lobos enraivecidos eclodindo-se em flocos fulminantes de espera. Não escutaram o tempo que sussurrava baixinho na intuição de ambos. Logo, aconteceu o previsível retorno.
Mendigos sujos e mal vestidos, cheios de doenças mal curadas, espectros mal enterrados e delírios mal alimentados. Aqueles dois se amaram, e agora sim, imergiam na imensidão do oceano. Aquele amor causava nela uma Náusea órfão de mãe, carente de pai. Mas pelas noites aterrando os pés nos butecos e vilas falidas, ela compreendia a importância do peso, ele não. Ele foi sufocando-se no próprio ar e no amor, que pra ele representava um feto morto nas mãos, mas ainda assim, um amor. Como?! Feriram-se ainda mais. Aquele vâmpiro arrancava aos dentes a pele esclerosada da princesa indisposta. Discursos discursos dircursos, justificativas que a fazia perder-se da sanidade socialmente aceita. Gritos, soluços e um choro que não cessava. Ela se bateu inteira e arrancou com alicates as unhas dos pés. Ele assistia tudo em silêncio, se afastando das chagas que plantara com as mãos. Da forma mais sutil e preguiçosamente aceitável, envolveu-se com mulheres mais leves e menos profundas, era mais suportável. Apontava o dedo com toda energia que podia sustentar e esfregava na cara dela uma voz grave e rouca dizendo: Louca!
Louca ou Bruxa... Qual a diferença?!
A maioria dos homens temem o encontro com a Bruxa. Porque ela derruba mascaras e encontra, principalmente no não dito, a comunicação que uma outra alma lhe oferece. Descobre mentiras, pelo jeito como ele meche os braços, descobre traições pelo olhar que ele lança antes de dormir, descobre verdades pela voz que se alavanca aguda e cheia de pausas, descobre os podres pelo cheiro que exala dos cabelos. Dessa forma é fácil se assustar, ou fugir. Quem decide e o que decide?! Ainda não sabemos.
Romperam. Não foi só um desvencilhar-se, dessa vez os Deuses interferiram e fizeram o que foi possível para que os dois amantes se afastassem. Feridas, muitas feridas e dores foram deixadas nesses dois. Feridas que ela reconhecia e dores que ele ainda não se sabia de si.
Hoje, na distancia imposta pelos astros, ela ama na paz da saudade, reconheceu a Bruxa que carrega a Louca no peito e lhe da regaço sempre que necessário. O ama ainda mais, descobriu a forma do amor sublime, aquele dos livros de infância, onde a Branca de Neve permanece dormindo antes mesmo que seu noivo apareça, guardada por sete anões ela processa o ensinamento do Rei de Ouros e ele absorve a fúria da Rainha de Espadas.
Ela acordou com saudades da amiga, com sede e uma vontade enlouquecedora de fumar um cigarro.
"Alcance o vazio total.
Agarre-se a calma.
As dez mil coisas correm por aí;
Eu só observo, aguardando sua volta.
As coisas não param de crescer,
Mas cada uma volta à sua raiz.
Volta à raiz é a calma.
Isso quer dizer voltar ao que é.
Voltar ao que é
Quer dizer voltar ao comum
Entender o comum:
Iluminação
Não entender o comum:
A cegueira gera o mal.
Entender o comum:
Abre-se a mente
A abertura da mente leva a compaixão
A compaixão à nobreza
A nobreza à santidade.
A santidade ao TAO.
O TAO perdura
O corpo morre.
Não existe perigo"