Era uma mulher de cabelos curtos
e uma pele lisa que mais parecia um veludo antigo, sem poeira, com um perfume
que perdura inevitavelmente. Ela possuía a capacidade felina de se esconder nos
cantos, alisando as pernas dos convidados, fazendo-se parecer mansa e melancólica,
uma onça sem dentes. Perdia-se nos cenários que criava, acabava por vezes
deixando de existir, morria um pouco, esgotando suas sete vidas no intervalo
entre uma estação e outra. Inverno, quase sempre inverno, ela chovia por dentro
e tentava ser feliz, mesmo que ser feliz se justifisse na força contrária de um
pouco de tristeza naquele olhar sem rumo, sem nexo, sem pretexto de um horizonte
definido. Sentia-se como os pés sentem a terra ou o asfalto que atravessa o calçado,
fincando o solo e os nervos de quem anda sem saber o caminho. Seus pedaços eram
colados em frente ao espelho e ela sorria quando a restauração se aproximava da
parte de dentro. Essa mulher não sabia muito das coisas da vida, exceto o preparo
de um bom macarrão ou a fórmula secreta dos cremes dentais. Mas sentia, sentia
tanto que passava dias escondida embaixo da cama, curando as feridas do outono
e se preparando para as cicatrizes da primavera. Não era fácil ter em si os
cabelos curtos e a pele de veludo, nenhuma mão era forte o suficiente para
cuidar do aço das pernas e do chumbo da alma, doía... No frio um pouco mais. Um
dia ela decidiu que seria melhor, melhor e mais. Desde essa época, que não
demora muito a se rememorar na lembrança e trazer no corpo os arrepios do
presente, ela especializou-se na construção de um novo tecido. Dedicava três ou
quatro horas, que lhe restavam de um dia inteiro, para fabricar uma pele nova,
um osso novo, um dentro mais forte e um fora mais leve. De alma não sabia muito
e essa foi a fase mais difícil da composição. Descobriu que juntando um pouco
de chuva, os galhos secos que caiam das suas plantas, uma frase ou outra, um
pedaço de queijo minas, chás e suco de maracujá, era possível reconstruir aquele
seu pedaço já em pedaços, que um dia alguém que ela não sabe quem, deu o nome
de alma. Passou dias e meses e anos trabalhando na penumbra desconhecida, quando
se decidiu pelo fim, estava tão sozinha que não soube a função do seu novo
tecido. Era na solidão que o tecido servia. Era somente pra ela a falta de
sentido, os pedaços secos das plantas, os pingos da chuva ou o suco de
maracujá. Eram nos olhos, que se diziam fundos, que ela sentia o gosto de ser a
felina enroscada nas fábulas sem cenário, nos enredos sem finais, nos roteiros
desconexos e surrealistas. Somente pra ela sua vida fazia sentido, seu tecido
novo, sua alma velha, seus pedaços colados com cuidado e sua forma desfragmentada
com o tempo. Exclusivamente patenteava a criação de ser ela mesma, apesar de
doer no inverno e no outono permanecer escondida embaixo da cama. Somente ela
saberia dizer sobre suas construções e seus caminhos, apesar de possuir no dicionário
uma definição que algum dia, um velho rapaz e uma jovem senhora, criou pra si. Pode-se dizer que ela seguiu, ainda no escuro,
mas iluminando-se no verão que chega e escurecendo-se na primavera que acaba de
findar.
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