sexta-feira, 3 de junho de 2011

A visão do real

Ela se enganou, tão intensamente e cegamente, que se assustou quando viu aquele carro tombado no chão, aquelas pessoas, aquela possibilidade tão próxima da morte. O barulho, o acelerador, as pessoas, e seu medo que gritava. Um dia de monstro, um monstro que dormiu com ela, precisava não acreditar, porque engolir aquele evento lhe doía mais que o sentir-se usada e enganada. Aquilo não era amor, mas um pedaço de alma aproveitando-se da infinitude de outra. Ela tremia, estava machucado e o braço pendendo para fora do carro, a visão lúgubre do asfalto, o calor do corpo que descobre, o medo de perder ali, a vida. O som eletrônico envolvia a situação de uma atmosfera contrastante. Lembrou-se da conversa, e da constatação “Oportunista”. As situações rangiam dentro dela, e sem saber o que fazer, com a pouca fala que lhe restava, perguntou: “Alguém ligou para o SAMU?” Ela podia ter morrido, sim, ela podia ter morrido, naquela noite de sexta-feira fria iniciando junho e comprimindo a noite. Um sequência de acontecimentos desencadeados pela falta de carinho e de cuidado. “Não precisa correr tanto”, “Você ta bêbado, doente....deixa que eu dirijo”, “Você ta mentindo, você ta mentindo pra mim, pra você...Cuidado com o taxi”, “Oportunista”, frases e frases que não foram ouvidas, e o barulho do carro contra outro carro, a visão do asfalta ao invés do teto, a cabeça no chão, o peito sangrando, e um choro silencioso de quem não se percebe em um acidente. Atônita, lembrou-se que não estava sozinha, girou com cuidado a cabeça e sentiu uma fincada de faca no pescoço, entortou um pouco os olhos, para a esquerda, e com grande dificuldade, passou a ver. Um corpo estendido ao seu lado, um corpo sem vida, uma música eletrônica, os pés das pessoas do lado de fora, o sangue, as lembranças, as falsas promessas, o discurso pronto, o bar, o excesso de álcool, a velocidade, o táxi, o medo, a adrenalina do falso amor. Ele mentiu, mentiu e agora estava morto. Ela o matou a partir do momento que, mesmo sem acreditar, aceitou o convite e entrou no carro. Meu Deus!Havia um corpo morto estendido do seu lado esquerdo, um corpo seu, um corpo gelado, um corpo idêntico aquele que, dias atrás acreditava-se seu. Ela havia matado seu amor, e ele havia matado uma máscara tenebrosa de se fingir amando. Aquele corpo não tinha alma, aquele corpo não tinha voz, aquele corpo não tinha mais espaço. Ela sentia seu corpo tremer pela clareza daquilo que escolhia não ver. Mas dentro de instantes foi acometida de uma certeza profunda.... é melhor assim, é melhor que seja assim. Reconheceu-se cega e burra, buscando no passado as boas lembranças ela encontrou somente um corpo, e nunca uma alma. Foi chupada, cuspida, enganada com a melhor das línguas, o melhor dos discursos, o melhor da farsa. Sentiu-se tão bem do lado do corpo morto, porque agora era real, porque agora estava morto de verdade, porque agora ela percebia a semelhança daquele corpo passado com aquele corpo presente. Dentro do carro tombado ela entorpeceu-se de uma gargalhada seca e funda, uivou de contentamento por encontrar-se de novo, pois foi isso o que de melhor restou daquele carro tombado, o acidente e aquele asfalto quente, uma certeza absurda dela mesma, de que ela estava viva e sempre esteve, de que aquele corpo não merecia aquela alma...foi ali que, novamente, Helena nasceu!

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