Ela ia. Como quem arranca dos cabelos grampos mal colocados. Seu corpo tremia e na alma restava uma dor imensa de quem um dia recebeu uma surra. Suas mãos doíam, doíam como brasas quentes aquecendo o passado terrível e o trauma da entrega. Traumatizada ela caminhava vaga, sem rumo, sem chão. Gritava sem som a dor de ter sido mal tratada, mal amada, mal cuidada. Sentia-se louca. Ninguém nunca havia lhe feito tanto mal. Ninguém, nunca, havia lhe deixado em pele e osso como agora. Vivia de insônias, dores no estomago, tremores e insegurança. Vivia com medo, com ódio, com raiva. A sensação era aquela da infância, quando assistia aos filmes do Fred Krueger na TV e depois não conseguia dormir. Um pesadelo eterno. Um pesadelo onde ela era a protagonista. Onde ela era o sonho morto e todo aquele sangue escorrendo parede abaixo. “Meu Deus, como alguém pode ser tão cruel” ela gritava. Dores, dores, dores terríveis nas costas. Sinusite, gastrite, amigdalite, esclerodermia, enxaqueca, otite e dor de dente. Eram, a partir de hoje, suas novas e abomináveis companhias diárias. Sentia frio. Sentia-se desprezada, descartável, um lixo podre, uma mulher feia e velha.
Seu corpo não era mais o mesmo. Sua saúde física e mental haviam mudado. Um monstro. Uma bosta. Uma cobra assassina e cruel. Um veneno fincado goela abaixo. Um ser humano desumano, mentiroso, mal caráter e cruel.
Era noite. Como continuar?!
Cocaina, vodka, vinho, Clarice, Caio, maconha, coca, doce, amigos, conversas, textos, Caetano, Chico, Gal, Dostoiévski, Sylvia, plantas, casa, sobre-viventes...sobreviver a tudo que havia ficado. Sobreviver as marcas de um furacão sanguessuga. Sobreviver a grande mãe maléfica e protetora. Sobreviver as farsas. Sobreviver ao pulo. Sobreviver aos cortes. Sobreviver aos medos. Sobreviver as dores. Sobreviver ao buraco vazio. Sobreviver a grande desilusão. Sobreviver a morte.
Madrugada.
Senta-se à mesa. Acende delicadamente um cigarro. Acaricia as pernas, a nuca, o cabelo. Toca sua intimidade. Aperta os olhos, umedece os lábios, canta e chora. Chora silenciosamente e reza: ”Meu Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença. Faça com que eu tenha a coragem de Te amar, sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo. Faça com que a solidão não me destrua, e que ela me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo. Receba em teus braços meu pecado de amar tanto.”
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