segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Uma pequena história de Natal

Andava cambaleando dentro e fora da chuva. Dentro era mais cor e fora era mais cinza. Andava comendo amêndoas. Andava de lado e corria de costas. Guarda-chuva preto entre os dedos das mãos . Andava ouvindo música e corria deixando lágrimas. Rodava, rodava enlouquecida feito barata tonta pisada. Doíam-lhe os pés e a alma abafava, ria e gozava. Enchia-se de chuva e aos poucos foi se tornando inchada. Inchada de mais. Úmida de mais. Viva de mais. Mulher de mais. Humana de mais. Mofada. Um pedaço verde de mulher escorregando entre as calçadas, desfilando entre os muitos machos de pau duro a sua espera. Imensos homens cor de terra. As árvores deixavam cair flores quando ela passava, os urubus reapareciam nas praças como se ali existisse um gigantesco açougue de carniça. Cobria-se de carne morta e lavava-se naquela fonte de sangue. Encobria-se das piores mazelas humanas e reconhecia-se no espelho dos carros. Era Natal. Ou, quase Natal. De algum lugar do alto caiam pacotes e mais pacotes dos melhores presentes que uma mulher pode receber: joias, colares, anéis, roupas, sapatos, bolsas, filhos, casas, maridos, dinheiro, viagens, carros e tudo que fazia brilhar os olhos dos urubus. Todos gritavam de felicidade, todos ali riam como cegos psicóticos adoecidos. Todos eram duros, pedras, rochas, urubus, homens de pau duro, mulheres de bunda arrebitada e crianças esquizoides. Cada presente que caia sobre ela era um pedaço a mais do verde que ela perdia.  Era Natal, e seu desejo era mofar junto aos rodopios e saltos e paixões e amores e pessoas e homens e mulheres e instantes e abraços e caricias e desejos e flores e mato. Mas onde? Mas como? Cada pedaço de verde era alimento para um urubu. Ao redor dela formou-se uma roda, e aqueles pássaros negros se excitavam progressivamente com as perdas da mulher. Cada vez mais ela andava fora da chuva, e rodopiava menos, dançava menos, endireitava-se mais. Os presentes caíam como uma cascata berrante e alucinante. O céu era vermelho e o cheiro de fritura impregnava o lugar. A mulher antes úmida e mofada tornava-se cada vez mais dura e seca, ia perdendo as forças, derretendo-se no bico daqueles bichos famintos. Até que no ápice da transmutação Papai Noel apareceu nu, com um caralho enorme tatuado na ponta “Buy”. Uma música feliz tomou conta do ambiente, e os urubus entretidos com o saco vermelho e amarelo do Papai Noel, deixaram de lado a mulher. Foi ai que a mulher foi pega pela mão daquele quase homem, quase Deus, e teve sua garganta esfolada e maltratada pelos caralhos de Noel. Tudo ria, todos riam, tudo esquizofrenicamente acompanhava a cena. Noel disse: É esse o espirito do Natal.
A mulher dura e seca endireitou as pernas e voltou pra casa, com muitas sacolas de presentes nas mãos. 

Um comentário: